quinta-feira, 22 de novembro de 2012

A anfitriã



O barulho da chuva no telhado a acordou. Ela sabia que era hora de levantar-se. No entanto, seu corpo não correspondia. Procurou o celular que estava ao lado da cama. Ao ligá-lo deu-se conta que dormira mais que o permitido. Imediatamente, afastou as cobertas e sentou-se na cama. De pijama e com o cabelo ainda desarrumado olhou-se no espelho. Por alguns segundos, contemplou o próprio reflexo. 

Ela desvendou cada parte do seu corpo. Não se achava bonita. Longe disso, por vezes sentia vergonha de si mesma. Suas amigas falavam para deixar de ser boba. Mas, ela não conseguia. Não tinha paciência para se arrumar ou fazer coisas de mulher. Achava chato passear no shopping atrás de roupas “da moda”. Afinal de contas, ela nem sabia o que estava na moda. O que a fazia feliz, era vestir aquela blusinha branca, jeans surrado e, o velho e bom, tênis all star. Isso sim era conforto e, por que não dizer, estilo.
Sua mãe falava que ela era muito desligada, precisava ser mais vaidosa como as “meninas da sua idade”. Era só fechar os olhos que se lembrava da dona Gilda falando:
- Rafaela vai colocar aquele vestido bonito que a mãe comprou pra ti. Tira essa calça feia guria.
Mas ela nem ligava, respondia um sonoro “ta bom manhê” e continuava o que estava fazendo. Em alguns momentos, até sentia vontade de mudar. Queria se sentir especial, chamar a atenção, ser notada. Logo desistia. Preferia permanecer atrás dos palcos e longe dos holofotes.  O que mais a incomodava era as pessoas que sentiam extrema necessidade em aparecer. Rafaela não conseguia entender esse ato desesperado por atenção. Ela até gostava de se destacar, mas preferia que fosse pelo conhecimento e inteligência e não só por um corpinho bonito. Até porque, pensava Rafaela, um dia o corpo bonito acaba e não há cirurgia que resolva. Ela preferia o natural. Nada de extravagância ou corpo deformado.
Hoje, porém, era um dia especial. Ela precisava transformar-se. Ser alguém diferente do habitual. Diferente como? Rafaela temia o inesperado e, ao mesmo tempo, o aguardava ansiosamente. E se por um único dia ela fosse outra pessoa? Outra pessoa não, corrigiu Rafa. Hoje ela queria deixar aflorar uma nova parte da sua personalidade. Um lado esquecido. Uma Rafaela que nem sequer fora apresentada. Era o momento dela se encontrar com ela mesma. Duas metades que se completam, ao mesmo tempo, em que se diferenciam.
Rafaela já estava tão acostumada a ser desse jeito que estranhava a sensação de mudança. Há mais de vinte anos mantinha os longos cabelos lisos, o gosto por rock e músicas fora da moda e à fascinação por literatura policial. Por vezes, ela se sentia uma velha dentro do corpo de uma jovem de 22 anos. Coisas simples lhe faziam bem. Ouvir música era uma delas. Desde pequena, a sua brincadeira favorita era cantar. Mas, Rafa, como os amigos a chamavam, também gostava de passar o tempo ao lado do seu animal de estimação. O pequeno cachorro Zig parecia entender tudo que ela sentia, sua companhia era reconfortante. Se existe cumplicidade entre o homem e os animais, Rafaela era prova viva dessa estranha constatação.
O cachorro, alias, era um dos poucos amigos que tinha. Os demais se afastaram pela incompatibilidade de “agendas”, se é que isso realmente existe. Mas a vida lhe deu uma nova oportunidade. Meio que sem querer, ela conheceu outras pessoas. Juntos eles aprenderam com as diferenças e hoje são grandes companheiros. A Universidade foi a responsável por selar essa amizade.
Hoje, porém ela não queria pensar em ninguém. Talvez fosse egoísmo de sua parte, talvez não. Em alguns momentos, refletiu a jovem menina, é bom “olhar para o próprio umbigo”. Ao mesmo tempo em que desejava a solidão, sentia um enorme vazio no peito, uma vontade de gritar por socorro, pedir ajuda. Desejo de esconder-se em um abraço. Voltou à realidade, e conformou-se com a própria presença.
Ainda fitando o rosto no espelho empoeirado, Rafaela levantou-se e caminhou até a janela do quarto. A chuva tinha passado. Restava agora um céu carregado com nuvens cinzentas. Ela gostava de dias assim, por mais estranho que isso parecesse. Sempre brincava com Gabriel quando estavam sós: quanto mais escuro o céu melhor. E ele retrucava a chamando de bruxinha misteriosa. Ela gostava do jeito dele. Os dois terminavam a saudável discussão com beijos e palavras carinhosas. Era engraçado! Como ela pôde se apaixonar por um guri tão diferente dela. Eles eram gato e rato, água e azeite, sal e açúcar.
No entanto, as diferenças, ao invés de afastá-los os fortaleciam. Depois de quatro anos juntos, as brigas começaram a ganhar espaço no relacionamento. E as palavras de amor foram trocadas por insultos e ofensas. Ainda assim, sentia falta dele. Ao fechar os olhos, uma lágrima escorreu por descuido pelo o seu rosto. Suspirou de saudade. Sempre que se lembrava do namorado, ou melhor, do ex-namorado ela chorava. Era incontrolável. Podia estar no carro, no serviço ou na universidade. Falava o nome dele e a lágrima aparecia indiscreta e sem ser convidada, muitas vezes inconveniente. Se ela pudesse voltar no tempo tentaria mudar esse final. Agora, porém, era tarde demais. Ele se foi e levou junto consigo todas as lembranças de felicidade. O “nós” deu lugar ao “eu”. A vida continua - pensou Rafaela - chegou à hora de recomeçar, de escrever uma nova história. Hoje é o início de uma nova vida, de uma nova Rafaela.
Procurou no guarda-roupa o vestido que havia separado para a ocasião. Deixou-o em cima da cama e foi tomar um banho. Por alguns longos minutos, desligou-se do mundo exterior. Pensou em nada e, ao mesmo tempo, em tudo. Chegou o momento. De volta ao quarto, secou os cabelos e começou a maquiar-se. Encorajou-se ao se ver bela no espelho. Nem ela acreditou no reflexo que apreciava. Não parecia ser aquela guria de sempre. Era outra e, estranhamente, era a mesma Rafaela.

Tantos dias de planejamento, estudo e dedicação, finalmente acabaram. Agora era real, não tinha replay. Era a vida sem cortes. Sentou-se no lugar preestabelecido pela organização do evento. Em cima do palco vislumbrou a família e os amigos gritando o seu nome. Sua mãe tirava tantas fotos que os flashes quase a cegaram. Sentiu-se amada e feliz.
Ao escutar o professor chamando o seu nome, Rafaela tremeu-se da cabeça aos dedos dos pés. Levantou-se e com os aplausos dos amigos e familiares se dirigiu, lentamente, para o centro do palco.  Paralisou. Todos olhavam para ela, e ela sozinha correspondia a todos os olhares. Uma etapa de sua vida estava concluída. Finalmente estava formada.
            Ainda tinha dúvidas sobre a vida, sentia saudade de velhos amigos e desejava a conciliação com o ex-namorado. Ainda se sentia uma adolescente irresponsável e cheia de inquietações. Mesmo assim, sabia que era o momento de crescer. Precisava encontrar-se, descobrir-se, aventurar-se. Com um bom rock de fundo, Rafaela encheu os olhos de lágrima. Não por tristeza, mas sim por felicidade. Sob os olhares emocionados e sinceros da plateia, ela desceu do palco e iniciou uma nova página na sua vida. Caminhou rumo a um trajeto desconhecido. Rafaela foi atrás de respostas e, por que não, de perguntas. Ela foi atrás do presente e do futuro, deixou para trás o velho passado. Rafaela libertou-se de tudo o que lhe fazia mal e foi em busca da própria felicidade. Ela foi iniciar os próximos capítulos do livro chamado vida. 

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